A meditação budista apresenta-se como o mais importante empreendimento da existência humana. Indubitavelmente, comer, respirar e dormir são necessidades muito mais urgentes, mas não devemos confundir os meros fundamentos de nossa realidade animal com o denominador comum de nosso ser.
Compreender quem somos e quem não somos, perceber claramente as possibilidades e limitações de nossa situação atual, embasar nossas ações em um cuidado consciente em relação ao demais seres vivos, trabalhar incessantemente pelo próprio aperfeiçoamento, assim como pelo aperfeiçoamento dos outros — essas e outras metas estão incluídas no domínio da meditação budista. A meditação é o próprio coração do budismo, a mensagem primordial dada ao mundo pelo Buda Shakyamuni.
Este ponto essencial do budismo, com sua doutrina de autoaperfeiçoamento e iluminação, se baseia em duas premissas geralmente não explicitadas.
De acordo com a primeira, quem verdadeiramente consegue compreender algo, ficará liberto de seu jugo e influência.
Esse elo inextricável entre sabedoria e libertação, apesar de raramente discutido, está sempre subentendido nos escritos budistas. Obviamente, o tipo de compreensão de que falo não é o discursivo, cultivado em sala de aula ou apreendido nos livros; nem tampouco é a esperteza intuitiva que se adquire ao longo de uma vida de experiências humanas. O tipo de compreensão a que me refiro está além dos modelos de comparação e classificação que utilizamos em nossa atividade mental cotidiana e além de qualquer possível percepção sensorial ou extrassensorial.
No budismo, tal compreensão é chamada de prajña. Considera-se que aqueles que já vivenciaram momentos de sabedoria prajña concentrada e direcionada à natureza fundamental de nossa existência foram totalmente transformados em seu estado individual de ser, o que os tornou seres moralmente perfeitos e os levou a transcender o sofrimento. Simplificando: a experiência da sabedoria prajña focada nas realidades básicas da condição humana constitui a iluminação, que, segundo se acredita, traz a total libertação dos problemas decorrentes da condição humana.
O segundo pressuposto é que prajña é uma capacidade inata da mente, de tal forma que nos bastaria focalizar a mente num objeto ou tópico para que a sabedoria inata da mente fosse capaz de compreender tal objeto. Naturalmente, isso é mais fácil de falar do que de fazer! Entretanto, quando tal capacidade é alcançada, torna-se possível concentrar o poder inato da mente, como uma lanterna, em qualquer problema ou questão de nossa escolha.
Nos textos budistas, o processo de levar a mente a focalizar questões específicas é em geral batizado de vipashyana, termo que se traduz indiferentemente como “contemplação”, “discernimento” ou “insight meditativo”. Na verdade, a palavra tem a ver com todo um conjunto de exercícios de meditação por meio dos quais se pode direcionar a capacidade mental inata de prajña para diferentes tópicos e, assim, compreender a verdadeira natureza deles. O objetivo é conquistar o que chamamos simplesmente de “compreensão clara” de um tema ou “insight” a respeito de um assunto – termos cujo significado indica que a pessoa consegue compreender o tópico tal qual ele é, sem erro ou distorção subjetiva. [...] os métodos e tópicos da meditação vipashyana ou insight meditativo são discutidos muito detalhadamente nas escrituras budistas. Entretanto, o pressuposto básico de que prajña é uma capacidade inata da mente nunca ou raramente é explicitado.
Com base nessas premissas, a multifacetada tradição das práticas de meditação budista oferece uma ampla gama de técnicas para pessoas de variadas inclinações e capacidades, de modo que cada qual possa trabalhar em seu caminho individual rumo à conquista do insight. Uma vez que quase todos tendemos a ter uma mente hiperativa, muitas dessas técnicas são apresentadas como auxílio à concentração mental.
Em contraste com a meditação vipashyana ou insight meditativo, as técnicas de concentração, ou shamata, destinam-se a treinar a mente a concentrar seu foco em um dado objeto com atenção, sem interrupção nem distração. Essa “musculação mental”, digamos assim, destina-se a promover a superação de uma porção de incapacidades humanas comuns: para os que tendem à ganância, existem exercícios de meditação sobre a impureza do corpo humano; para os irados, há técnicas que objetivam gerar compaixão pelos outros seres; para os dados à ignorância, há reflexões guiadas sobre a miríade de componentes da realidade que vivemos e suas respectivas interações.
É claro que alguns desses exercícios passam sutilmente de concentração para insight e um dado conjunto de exercícios pode gerar múltiplos benefícios. Mas os requisitos e técnicas da meditação budista são muito mais específicos, mais elaborados e mais exigentes do que a maioria dos leitores imaginaria. A meditação budista é uma tradição de artesanato espiritual sem paralelo em outras culturas.
O livro Purificando a mente descreve a meditação budista sob a perspectiva da tradição do Budismo Maaiana chinês e pelos olhos de um de seus maiores representantes vivos, o mestre Hsing Yün, de Fo Guang Shan. Assim sendo, encontramos no seu livro vários níveis de autoridade. Primeiro, Hsing Yün é produto da tradição chinesa do Budismo Maaiana, e sua formação – em alguns dos mais importantes centros monásticos durante as tumultuadas décadas de meados do século XX – instilou-lhe uma compreensão da tradição que é a um tempo abrangente e profunda. Segundo, ele foi o fundador e é o líder espiritual da maior organização monástica existente em Taiwan hoje e daquela que, com certeza, é um das maiores redes de praticantes budistas leigos e ordenados do mundo. Refiro-me à combinação entre o sistema de templos e monges de Fo Guang Shan e a Associação Internacional Luz de Buda (Blia) de fiéis leigos, com seus vários templos e organizações nos cinco continentes. Terceiro, em consequência de seus muitos anos de experiência como estudioso do budismo e também professor de centenas de milhares, senão de milhões, de budistas, Hsing Yün aprendeu a apresentar os venerados ensinamentos do Buda Shakyamuni de forma clara e concisa, fiel à tradição maaiana chinesa. Além disso, ele enriquece seus textos com casos verídicos e exemplos particularmente pertinentes à vida contemporânea.
Trecho da introdução do Professor do Departamento de Estudos da Religião da Universidade de Indiana, EUA, John R. McRae, para o livro Purificando a Mente – A meditação no Budismo Chinês, Venerável Mestre Hsing Yün, Editora de Cultura, São Paulo, maio de 2004.