Budismo

Conceitos fundamentais

 

Gênese Condicionada

 

O budis­mo é às vezes con­si­de­ra­do uma filo­so­fia, e não uma reli­gião, por­que as ver­da­des que se encon­tram no cerne da ilu­mi­na­ção do Buda são tão pro­fun­das e abran­gen­tes que pare­cem ter cará­ter mais filo­só­fi­co do que religioso. Na noite em que se ilu­mi­nou sob a Árvore Bodhi, o Buda compreendeu mui­tas ver­da­des simul­ta­nea­men­te. Uma das mais profun­das e sig­ni­fi­ca­ti­vas foi a ver­da­de uni­ver­sal da Gênese Condicionada, uma das ideias cen­trais do budis­mo e uma das mais impor­tan­tes do mundo.

 

Aspectos Fundamentais da Gênese Condicionada

O que é Gênese Condicionada? É a noção de que nada, ­nenhum fenôme­no surge do nada e tam­pou­co pode exis­tir de forma autô­no­ma, por si só. De acor­do com o Sutra Lankavatara, Gênese Condicionada sig­ni­fi­ca que “fenô­me­nos não sur­gem independentemen­te; surgem na dependência uns dos outros”.

 

Gênese con­di­cio­na­da, causa e con­di­ção

O Buda disse que todos os fenô­me­nos são gera­dos por uma combinação de cau­sas e con­di­ções. Sem cau­sas e con­di­ções, ­nenhum fenôme­no sur­gi­ria ou exis­ti­ria neste mundo.

 

Colocada assim, de forma sim­ples, a ideia da Gênese Condicionada pode pare­cer óbvia e tri­vial. Entretanto, suas con­se­quên­cias são pro­fun­das, pois ela impli­ca que nada tem existência pró­pria inde­pen­den­te. Não há um “eu” que exis­ta sepa­ra­da­men­te de outras coi­sas. Significa tam­bém que não exis­te fenô­me­no per­ma­nen­te ou abso­lu­to em nenhum lugar do uni­ver­so. Uma vez que todos os fenô­me­nos são inter­de­pen­den­tes, nenhum pode ser per­ma­nen­te ou imu­tá­vel. Tudo se trans­for­ma.

 

O Buda disse que nada é per­ma­nen­te, que tudo, em todos os luga­res, depen­de de cau­sas e con­di­ções e, se as cau­sas e con­di­ções que geram ou sus­ten­tam um fenô­me­no forem remo­vi­das, o fenô­me­no cessa de exis­tir. O Buda disse: “todos os fenô­me­nos surgem de cau­sas e con­di­ções. Todos os fenô­me­nos são des­truí­dos por cau­sas e condições”.

 

Mas o que são cau­sas e con­di­ções? De onde vêm elas? A res­pos­ta é: cau­sas e condi­ções são fenô­me­nos que surgem devido a ­outras cau­sas e condi­ções.

 

O Buda deu a cer­tos fenô­me­nos o nome de “cau­sas” e a ­outros, o de “con­di­ções”. Fez isso para nos aju­dar a com­preen­der a forma como as coi­sas apa­re­cem e desa­pa­re­cem, como os fenô­me­nos sur­gem e se extin­guem. As pala­vras “causa” e “con­di­ção” só têm sen­ti­do em rela­ção uma com a outra. O que é uma causa aqui pode ser vista como um fenô­me­no ali ou como uma condi­ção acolá. Tudo depen­de do ângu­lo de obser­va­ção.

 

Causa e con­di­ção são os dois ele­men­tos bási­cos que pro­du­zem todos os fenômenos no uni­ver­so ou que são sub­ja­cen­tes a eles. Entre os dois, a causa é fator mais pode­ro­so do que a con­di­ção. No entan­to, se causa e condição não atua­rem em con­jun­to, nenhum fenô­me­no pode­ria ­jamais se manifes­tar ou exis­tir.

Um exem­plo: para que uma semen­te ger­mi­ne, são neces­sá­rios solo, água, ar e luz solar. Nesse caso, a semen­te cor­res­pon­de­ria ao que cha­ma­mos causa, enquan­to solo, água, ar e luz solar equi­va­le­riam ao que cha­ma­mos condi­ções. Um resul­ta­do ou efei­to é pro­du­zi­do quando todas as cau­sas e condi­ções ade­qua­das estão pre­sen­tes. O Sutra Shurangama diz: “Não exis­te nada no budis­mo, do começo ao fim, ou em todo o uni­ver­so, que não seja deter­mi­na­do pelas duas pala­vras ‘­causa’ e ‘­condição’”. De acor­do com o Sutra do Grande Nirvana: “todos os fenô­me­nos surgem de cau­sas e con­di­ções”.

 

A Gênese Condicionada não foi inven­ta­da pelo Buda. Ela é um prin­cí­pio universal que está na base de todos os fenô­me­nos do uni­ver­so. Ao se ilu­mi­nar, o Buda “sim­ples­men­te” des­co­briu esse prin­cí­pio. Aquele ser huma­no se tor­nou um Buda, justamen­te por ter compreendido a Gênese Condicionada. Depois de se ilu­mi­nar, ele ensi­nou aos ­outros o que havia com­preen­di­do. Ensinou que, quan­do con­tem­plam as infindá­veis inte­ra­ções entre causa e con­di­ções, os seres sen­cien­tes, pre­sos ao ciclo de nasci­men­to e morte, con­se­guem ver que sua vida não foi cria­da por algum deus pos­ta­do fora do uni­ver­so, mas que sua vida é o resul­ta­do de uma com­ple­xa inte­ra­ção entre cau­sas e con­di­ções.

 

São as cau­sas que nos levam a nas­cer no paraí­so.
E são as cau­sas que nos levam a nas­cer nos rei­nos infe­rio­res.
Causas levam ao nir­va­na. Todas as coi­sas são cau­sa­das.

Sutra do Grande Nirvana

 

Gênese con­di­cio­na­da, causa e efei­to

Na seção ante­rior, abor­da­mos a Gênese Condicionada do ponto de vista das causas e con­di­ções que pro­du­zem todos os fenô­me­nos do uni­ver­so. Nesta seção, para apro­fun­dar nossa com­preen­são, foca­li­za­re­mos as inte­ra­ções de causa e efei­to, que são aspec­tos uni­ver­sais de todos os fenô­me­nos. Todos os fenô­me­nos são cau­sa­dos e produzem efei­tos.

 

Porque isto exis­te, aqui­lo exis­te. Porque isto surge, aqui­lo surge. Se isto não exis­tir, aqui­lo não exis­ti­rá. Se isto for extin­to, aqui­lo se extin­gui­rá.

Samyukta Agama

 

“Isto” e “aqui­lo” nesse tre­cho são ter­mos refe­ren­tes à causa e efei­to. De acor­do com essa máxi­ma, nem a causa nem o efei­to tem natu­re­za independente – os dois elemen­tos exis­tem em esta­do de inte­ra­ção dinâ­mi­ca. Sem um, o outro não exis­ti­ria. Os ter­mos “causa” e “efei­to”, assim como “causa” e “con­di­ção”, são con­cei­tos rela­ti­vos, que só têm sig­ni­fi­ca­do em relação um com o outro.

 

Na rea­li­da­de, este uni­ver­so é uma rede extre­ma­men­te com­ple­xa de fenô­me­nos que se entre­meiam e inter-rela­cio­nam de forma dinâ­mi­ca. Os budistas uti­li­zam os ter­mos “causa”, “con­di­ção”, “efei­to” e “resul­ta­do” para facilitar o enten­di­men­to de algu­mas das carac­te­rís­ti­cas ­gerais dessa trama intera­ti­va dinâmica. E com­preen­der esse uni­ver­so dinâ­mi­co é impor­tan­te, pois vive­mos nele e faze­mos parte dele. Assim, o que pen­sa­mos a seu respeito tem gran­de influên­cia sobre nós mes­mos e sobre ­outros seres. Alguns con­cei­tos fun­da­men­tais à com­preen­são budis­ta de causa e efei­to são:

 

Não existe causa inicial e não existe efeito ou resultado final. O Buda falou sobre “tempo sem come­ço”. Isso quer dizer que, por mais que voltemos no passado pro­cu­ran­do a causa inicial, sempre haverá outras anteriores, assim nunca che­ga­re­mos à causa ori­gi­nal. Mencionou tam­bém “tempo sem fim”, sig­ni­fi­can­do que, por mais que pro­cu­re­mos pes­qui­sar o futuro, sem­pre have­rá mais um efei­to e mais um e assim por dian­te.

Causa e efeito são relativos um ao outro, nenhum dos dois é absoluto. Causas pro­du­zem efei­tos, que por sua vez geram ­outros efei­tos e, dessa forma, transformam-se em cau­sas. Causa e efei­to são, na ver­da­de, os elos enca­dea­dos de uma inter­mi­ná­vel cadeia de even­tos. Vista sob uma determi­na­da pers­pec­ti­va, uma causa é uma causa. Vista de outro ângulo, apare­ce como efei­to.

 

Causas e efeitos perduram no tempo. Há quem tenha difi­cul­da­de em entender e aceitar que todo com­por­ta­men­to pro­po­si­tal gera efei­tos. Não há onde se escon­der do pró­prio carma. Mesmo que trans­cor­ram 10 ­milhões de anos, chega um dia em que os efei­tos cármi­cos do com­por­ta­men­to aca­bam por se mani­fes­tar. A maio­ria das pes­soas não con­se­gue con­ce­ber que as cau­sas cár­mi­cas ­fiquem arma­ze­na­das por perío­dos tão lon­gos e que sem­pre retor­nem e afe­tem a “pes­soa” que as produziu. Isso acon­te­ce por­que a base de uma “pes­soa” é a mente. As semen­tes cár­mi­cas ficam esto­ca­das no fluxo men­tal que segue seu cami­nho ao longo das eras. Nunca nin­guém rece­be nada que não mereça nem paga por nada que não este­ja deven­do. A mente é mais funda­men­tal do que o tempo.

 

Causa e efeito são duas faces da mesma moeda. Cada causa con­tém efei­tos, da mesma forma que cada efei­to con­tém uma causa. Quando plantamos fei­jão, não colhe­mos melão. Aquele que inten­cio­nal­men­te rea­li­za más ações, jamais colhe­rá o bem como recom­pen­sa.

 

Para Compreender a Gênese Condicionada

Além dos qua­tro aspec­tos fun­da­men­tais sobre causa e efei­to já expostos, os budistas cos­tu­mam falar de seis outras for­mas de se compreender causa e efei­to:

 

  • efeitos são gera­dos por cau­sas;
  • a per­cep­ção da apa­rên­cia depen­de de con­di­ções;
  • eventos depen­dem de prin­cí­pios;
  • os mui­tos sur­gem do único;
  • a exis­tên­cia sus­ten­ta-se no vazio;
  • um Buda é moldado a par­tir de um ser huma­no.

 

Discutiremos a ­seguir cada um des­ses con­cei­tos, pois pon­de­rar sobre o sig­ni­fi­ca­do e as impli­ca­ções des­sas ­ideias fun­da­men­tais leva a uma compreensão ­melhor da Gênese Condicionada.

 

Efeitos são gera­dos por cau­sas

A Gênese Condicionada depen­de pri­mor­dial­men­te da pre­sença de uma causa; em segui­da, de con­di­ções ade­qua­das. Quando as cau­sas e con­di­ções estão certas, um resul­ta­do ou efei­to é pro­du­zi­do. Sem causa, impos­sí­vel haver efei­to. Tampouco have­rá efei­to se a causa esti­ver pre­sen­te, mas as con­di­ções forem ina­de­qua­das.

 

No budis­mo, a causa por trás do efeito é con­si­de­ra­da de impor­tân­cia primor­dial para o efei­to, ao passo que as con­di­ções para que a causa gere um efei­to são con­si­de­ra­das de impor­tân­cia secun­dá­ria – cons­ti­tuem “fator auxi­liar” da causa. Na con­cep­ção budis­ta, a causa é vista como requi­si­to “inter­no” por trás de um efei­to, ao passo que as con­di­ções ­seriam requi­si­tos “exter­nos”. Causas são gera­do­ras “dire­tas” e con­di­ções são gera­do­ras “indi­re­tas” de efeitos.

 

Um exem­plo: todos os seres huma­nos têm em si a semen­te (causa) da budeidade; con­tu­do, se não cer­ca­rem essa semen­te de con­di­ções ade­qua­das (estu­dan­do o Darma, pra­ti­can­do os pre­cei­tos e assim por dian­te), ela provavelmen­te não ger­mi­na­rá nem se tor­na­rá uma plan­ta sau­dá­vel. Do mesmo modo, uma pes­soa que tenha den­tro de si uma semen­te de raiva pode conseguir arma­ze­ná-la por mui­tos anos. No entan­to, se condições ade­qua­das se apre­sen­ta­rem, a semen­te pode­rá irromper de forma repen­ti­na, “sem nenhuma razão apa­ren­te”. A causa é o pré-requi­si­to essen­cial de um efei­to; condições são o requisito secun­dá­rio.

 

Todos os fenô­me­nos do uni­ver­so são gover­na­dos por cau­sas e condições. A ascen­são e a queda das coi­sas são gover­na­das por cau­sas e con­di­ções. Sem causa, não pode haver efei­to. Sem causa, nada pode exis­tir no mundo dos fenô­me­nos.

 

A per­cep­ção da apa­rên­cia depen­de de con­di­ções

“Aparência”, aqui, tam­bém pode­ria ser defi­ni­da como “carac­te­rís­ti­cas úni­cas” ou “carac­te­rís­ti­cas pró­prias”. Todos os fenô­me­nos com­par­ti­lham cer­tas “carac­te­rís­ti­cas univer­sais”, a saber: a imper­ma­nên­cia e a inter­co­ne­xão. Além des­sas, cada fenô­me­no é mar­ca­do por “carac­te­rís­ti­cas par­ti­cu­la­res”. O fogo é quen­te, o gelo é frio, pes­soas têm fisionomia dife­ren­te. Essas carac­te­rís­ti­cas não podem ser per­ce­bi­das, a não ser que as con­di­ções para a per­cep­ção sejam ade­qua­das.

 

Exemplificando: se não conhe­cer­mos um idio­ma, per­ce­be­re­mos seus sons de forma dife­ren­te de ­alguém que o conheça. Se tiver­mos sido edu­ca­dos em uma determinada cul­tu­ra, será difí­cil para nós per­ce­bermos aspec­tos sutis de outra, sem pri­mei­ro estu­dá-la. Ou seja: nossa per­cep­ção das apa­rências exter­nas é pro­fun­da­men­te afe­ta­da pelo nosso con­di­cio­na­men­to men­tal.

 

O Buda ensi­nou que esse con­di­cio­na­men­to é tão abso­lu­to que determina até o mundo em que vamos nas­cer. O moti­vo de nas­cer­mos em um corpo huma­no nesta vida é que as con­di­ções de nossa mente nos leva­ram a essa forma, assim como a todas as “aparên­cias” a ela asso­cia­das. Quem nasce neste mundo em um corpo ani­mal per­ce­be-o de uma forma total­men­te dife­ren­te de nós, por­que o con­di­cio­na­men­to sub­ja­cen­te à sua mente é dife­ren­te do nosso. O Buda enfa­ti­zou a impor­tân­cia dos atos intencionais por saber que as con­di­ções da mente são cria­das por eles. Uma vez que, nossas mentes tenham sido condicionadas, então, nosso mundo “aparecerá” à nossa volta de um jeito consoante com este condicionamento.

 

Eventos depen­dem de prin­cí­pios

Todos os fenô­me­nos, todas as apa­rên­cias e todos os even­tos dependem de princípios sub­ja­cen­tes. Eventos estão sem­pre vin­cu­la­dos a princí­pios. Não exis­te even­to sem um prin­cí­pio-mes­tre, não exis­te princípio-mes­tre sem even­to. Na prá­ti­ca, isso significa que o uni­ver­so tem uma base racio­nal. O tampo da mesa não vai se trans­for­mar de repen­te em um elefan­te, assim como o seu auto­mó­vel não vai desa­pa­re­cer sem nenhuma razão. Quem plan­tar uma semen­te de abó­bo­ra não colhe­rá toma­tes. Determinado tipo de causa pro­duz efei­tos cor­re­la­ti­vos. Se você bater em um peda­ço de madei­ra, ele não soará como um sino.

 

Os mui­tos sur­gem do único

No budis­mo, exis­te uma cone­xão muito impor­tan­te entre um come­ço sim­ples e um resultado com­ple­xo. As pes­soas, em sua maio­ria, não veem o mundo dessa forma e, assim, não ­colhem bene­fí­cios de suas prá­ti­cas budis­tas. Para elas, uma coi­si­nha não passa de uma coi­si­nha – não com­preen­dem o poten­cial ocul­to em cada coisa, em par­ti­cu­lar na mente huma­na.

 

Uma única fruta pode con­ter semen­tes para pro­du­zir mui­tas plan­tas, da mesma forma, mesmo um sin­ge­lo ato de bon­da­de pode gerar efei­tos com poder sufi­cien­te para mudar o mundo. Tudo o que faze­mos inten­cio­nal­men­te pro­duz efei­to cár­mi­co. Um peque­no ato de cruelda­de inten­cio­nal pode levar a efei­tos desas­tro­sos, ao passo que um peque­no ato de autên­ti­ca gene­ro­si­da­de engen­dra­rá efei­tos mara­vi­lho­sos.

 

A exis­tên­cia sus­ten­ta-se no vazio

Os prin­cí­pios que esta­mos dis­cu­tin­do – “efei­tos são gera­dos por causas”, “eventos depen­dem de prin­cí­pios” – exis­tem de fato. No budis­mo, é dito que a existência deles sus­ten­ta-se no vazio.

“Vazio” sig­ni­fi­ca não ter natu­re­za indi­vi­dual, não ter natu­re­za independen­te. Todos os fenô­me­nos estão inter­co­nec­ta­dos e, por­tan­to, é impos­sí­vel afir­mar que algum tenha uma “natu­re­za” própria per­ma­nen­te e duradou­ra. Em últi­ma aná­li­se, todas as coi­sas são “trans­pa­ren­tes” ou “vazias”; todas se sus­ten­tam no vazio. Para ilus­trar esse ponto, usa-se em geral o exemplo de uma mesa.

 

Eis como ele é for­mu­la­do. Uma mesa de madei­ra exis­te, mas se sustenta no vazio. Existe por­que pode ser toca­da e uti­li­za­da. Sustenta-se no vazio por­que, em últi­ma aná­li­se, não tem natu­re­za própria. A mesa vem da árvo­re, que depen­de de solo, água e luz solar para cres­cer. Alguém teve de der­ru­bar a árvo­re e car­re­gá-la; ­alguém fez a mesa; ­alguém a colo­couem sua sala. Quandodeli­nea­mos as cau­sas e con­di­ções das quais a mesa depen­de para exis­tir, vemos que, no fundo, não exis­te uma “natu­re­za da mesa” em si que tenha vindo para a sala. O que exis­te, isso sim, é ape­nas uma com­ple­xa teia de inter­co­ne­xões e mudan­ças. Se um único ele­men­to tives­se sido removido dessa teia, é pos­sí­vel que a mesa nunca che­gas­se a exis­tir.

 

Nada disso sig­ni­fi­ca que a mesa não exis­ta, ape­nas que ela se sus­ten­ta no vazio. A mesa que uti­li­za­mos per­ten­ce à rea­li­da­de con­ven­cio­nal. O vazio da mesa é sua rea­li­da­de últi­ma. Para com­preen­der o vazio, faz-se neces­sá­rio enten­der a imper­ma­nên­cia e a interco­ne­xão de todas as coi­sas. Quando virmos que todas as coi­sas são imper­ma­nen­tes e inter­co­nec­ta­das, perceberemos que nenhu­ma delas tem natu­re­za própria autô­no­ma.

 

O gran­de filó­so­fo budis­ta Nagarjuna (c. sécu­los I-II E.C.) disse que, se hou­ves­se uma única coisa per­ma­nen­te neste uni­ver­so, então, tudo o mais seria per­ma­nen­te e, em con­se­quên­cia, nada exis­ti­ria. As coi­sas exis­tem, mas se sus­ten­tam no vazio. Sem a mudan­ça, nosso mundo não exis­ti­ria.

 

Não se deve per­mi­tir à mente se ape­gar à forma, nem ao som, ao odor, ao paladar, ao tato. Não se deve permi­tir que a mente se ape­gue a nada. É assim que se des­per­ta a ver­da­dei­ra mente.

 

Sutra Vajracchedika-prajñaparamita (Sutra Diamante)

 

 

O Buda é moldado a par­tir de um ser huma­no

Um Buda é um ser huma­no que se fez Buda. No Sutra do Grande Nirvana, o Buda Shakyamuni disse: “Todos os seres sen­cien­tes do uni­ver­so têm a sabe­do­ria e a vir­tu­de de um Tathagata, só não as com­preen­dem por causa de seu apego à ilu­são”.

 

Várias vezes, o Buda disse que todos temos natu­re­za búdi­ca, bas­tan­do a qual­quer um esfor­çar-se na puri­fi­ca­ção de sua mente por um perío­do de tempo sufi­cien­te­men­te longo para che­gar a per­ce­ber a rea­li­da­de de sua natureza búdi­ca.

 

As cau­sas de nossa ilu­são são as impu­re­zas men­tais – cobi­ça, raiva e igno­rân­cia. A causa de nos tor­nar­mos Buda é a eli­mi­na­ção des­sas impu­re­zas. Estas são como as nuvens escu­ras que ocul­tam o bri­lho da lua, como a lama que polui a lim­pi­dez de um lago.

 

Um dos pri­mei­ros pas­sos para quem aspi­re tor­nar-se um Buda é ter plena compreen­são da impor­tân­cia do binô­mio causa e efei­to, pois essa é a “fer­ra­men­ta” com a qual se puri­fi­ca a mente. O bom com­por­ta­men­to nos leva à pure­za. O mau comportamento nos faz ficar ainda mais enre­da­dos na ilu­são.

 

Sutra sobre os Princípios das Seis Perfeições expli­ca: “Todos os seres sencientes pene­tram na sabe­do­ria do Buda por meio da puri­fi­ca­ção da mente. A natu­re­za fun­da­men­tal de um Buda não é dife­ren­te da natu­re­za de nenhum outro ser sen­cien­te”. O Sutra Plataforma do Tesouro do Darma, do Grande Mestre, o Sexto Patriarca Huineng diz: “O Buda é um ser sen­cien­te que se ilu­mi­nou. O ser sencien­te é um Buda que ainda não se ilu­mi­nou”.

 

A mente é cons­tan­te­men­te influen­cia­da por dar­mas impuros que só ces­sam depois de se con­quis­tar a budeidade. A influên­cia dos dar­mas ver­da­dei­ros, contudo, não tem fim. Como com­preen­der essa verda­de? Devemos enten­der que, se per­mi­tir­mos que os ensi­na­men­tos do Buda nos influenciem constantemen­te, nossa ilu­são ces­sa­rá e o corpo do Darma apa­re­ce­rá dian­te de nós.

 

Tratado sobre o Despertar da Fé no Maaiana

 

As qua­tro con­di­ções

Para que causa e efei­to atuem é pre­ci­so haver con­di­ções ade­qua­das. A Gênese Condicionada é a influên­cia recí­pro­ca que causa, efei­to e con­di­ções exer­cem entre si. A causa é pri­mor­dial, mas as con­di­ções são extre­ma­men­te impor­tan­tes. No que diz res­pei­to à nossa dis­cus­são sobre Gênese Condicionada, há qua­tro tipos fun­da­men­tais de con­di­ções que dis­cu­ti­re­mos a seguir:

 

Condição causal. A causa de um fenô­me­no, quan­do intrín­se­ca a ele, é cha­ma­da de “con­di­ção cau­sal”. A semen­te que gera um broto, por exem­plo, é con­si­de­ra­da sua condição cau­sal, já que de algu­ma forma o broto está con­ti­do na semen­te. É diferen­te da luz solar, que faz o broto cres­cer, mas é extrín­se­ca à semen­te e ao broto. Também o com­por­ta­men­to huma­no é gera­do por cau­sas intrín­se­cas e extrín­se­cas – a semen­te intrín­se­ca do riso huma­no (a con­di­ção cau­sal) normalmen­te só brota quan­do for esti­mu­la­da por uma causa extrín­se­ca – uma anedota, por exem­plo.

 

Condições ininterruptas. Referem-se prin­ci­pal­men­te às con­di­ções da mente e às vezes são cha­ma­das de “con­di­ções suces­si­vas”. A mente movimen­ta-se muito depres­sa de um pen­sa­men­to ins­tan­tâ­neo ao seguin­te. Quando o Buda con­tem­plou essa suces­são de ins­tan­tes, viu que não há interva­lo entre eles. Compreendeu que do “con­teú­do” do pen­sa­men­to, em um deter­mi­na­do ins­tan­te, deri­va o con­teú­do do pen­sa­men­to no ins­tan­te seguin­te, não sendo neces­sá­rio o auxí­lio de ­nenhum agente exter­no para esse pro­ces­so inin­ter­rup­to, que ocor­re na mente e inde­pen­de de qual­quer outro meio que não ela. O exame cui­da­do­so das con­di­ções men­tais inin­ter­rup­tas leva a uma ampla com­preen­são do fun­cio­na­men­to do carma e da mente huma­na.

 

Condição condicional. Condições con­di­cio­nais são aque­las extrínsecas que sur­tem algum efei­to sobre a mente. Intrínseca à mente é a cons­ciên­cia da visão, mas, sem forma e luz extrín­se­cas, essa cons­ciên­cia não fun­cio­na. O mesmo aconte­ce com os ­outros sen­ti­dos. O Buda disse que o próprio pen­sa­men­to não pode ocor­rer sem con­di­ções con­di­cio­nais extrín­se­cas do pas­sa­do, do pre­sen­te e do futu­ro.

 

Outras condições. Esse item com­preen­de todas as con­di­ções não classi­fi­ca­das entre as três ante­rio­res. São con­di­ções que auxi­liam o pro­ces­so de causa e efei­to ou que não o obs­truem. O fato de um cervo não ter comi­do uma amora é uma das outras condições que “gera­ram” a amora.

 

Esses qua­tro tipos de con­di­ção tam­bém podem ser vis­tos como “condições diretas” e “con­di­ções indi­re­tas”. Considera-se que todas as condições cau­sais ope­ram dire­ta­men­te no fenô­me­no, ao passo que os ­outros três tipos têm ope­ra­ção indi­re­ta.

 

Outra forma de per­ce­ber os qua­tro tipos de con­di­ção é a seguin­te: as con­di­ções cau­sais e as ­outras con­di­ções são, em si, sufi­cien­tes para pro­du­zir fenô­me­nos mate­riais. Por outro lado, a mente ­requer todas as qua­tro con­di­ções para ope­rar.

 

Todos os even­tos no uni­ver­so têm cau­sas e con­di­ções. Causas e con­di­ções geram o suces­so ou o fra­cas­so de qualquer evento. Pode pare­cer que o suces­so ou o fra­cas­so de algo que eu faça tenha sido gera­do por outra pes­soa, mas a ver­da­de é que todos os even­tos que me afe­tam são gerados por cau­sas que eu mesmo criei em algum momen­to pas­sa­do. A aparên­cia de que ­alguém está me fazen­do algu­ma coisa, não passa disso – apa­rên­cia. Quem com­preen­der bem esse ponto vai se sen­tir ale­gre e con­ten­te em todos os momen­tos e não experimen­ta­rá res­sen­ti­men­to nem neces­si­da­de de recla­mar.

Mestre Yinguang

 

 

Gênese Condicionada e Vida Humana

A Gênese Condicionada mos­tra como fun­cio­na o pro­ces­so uni­ver­sal da mudan­ça. E nos apon­ta tam­bém a ori­gem do sofri­men­to huma­no. Se ignorarmos ou desconsiderarmos o fato de que tudo é imper­ma­nen­te e que as coi­sas sur­gem e desaparecem em razão de cau­sas e con­di­ções, esta­re­mos deter­mi­nan­do nosso pró­prio sofri­men­to. Ao igno­rar a rea­li­da­de da Gênese Condicionada e nos afer­rar às ilu­sões de per­ma­nên­cia, cau­sa­mos sofri­men­to para nós mes­mos.

 

Por outro lado, se per­ma­ne­cer­mos cien­tes das for­ças de trans­for­ma­ção que trabalham cons­tan­te­men­te no mundo dos fenô­me­nos, esta­re­mos preparados para lidar com elas de forma posi­ti­va e pro­du­ti­va. Com­pre­endendo que os mui­tos nas­cem do um e que todas as con­di­ções são cau­sa­das, entende­re­mos como gerar boas con­di­ções em nossa vida, assim como no mundo em geral.

 

A ver­da­dei­ra com­preen­são da Gênese Condicionada traz ale­gria à mente, por­que nos mos­tra como viver. A Gênese Condicionada ensi­na que não somos víti­mas inde­fe­sas, fada­das a uma vida de dor e impo­tên­cia. Com ela apren­de­mos que nosso futu­ro está em nos­sas mãos. As con­di­ções futu­ras são deter­mi­na­das pelas semen­tes cau­sais que plantamos hoje. A liber­ta­ção é alcan­ça­da pela com­preen­são dessa ver­da­de e de sua utiliza­ção para o aperfeiçoa­men­to de todos os seres. A clara com­preen­são da Gênese Condicionada con­fe­re gran­de força à mente, por­que essa ver­da­de nos ensi­na a ver o que é real­men­te valio­so na vida e como trans­for­mar cir­cuns­tân­cias negati­vas em posi­ti­vas.

 

A Gênese Condicionada mos­tra que nada é per­ma­nen­te neste mundo e ensi­na por que as coi­sas são assim. Compreender esse con­cei­to é enten­der que todos os fenô­me­nos são con­di­cio­na­dos por ­outros fenô­me­nos e que todos eles “se sus­ten­tam no vazio”. Nada tem natu­re­za indi­vi­dual pró­pria, nem mesmo nós – em últi­ma ins­tân­cia, nós tam­bém somos ­vazios. A clara compreen­são dessa ver­da­de leva à liber­ta­ção em uma rea­li­da­de que está além da cobi­ça, da raiva, da igno­rân­cia, do apego, do sofri­men­to e de todas as ilusões da dua­li­da­de.

 

Contemplar fre­quen­te­men­te a Gênese Condicionada pode nos ins­pi­rar gra­ti­dão pelo que temos e pelo mundo em que vive­mos; nos ensi­nar a fluir com a vida de forma a bene­fi­ciar tanto a nós pró­prios como aos ­outros. A Gênese Condicionada nos incu­te esperan­ça, mos­tran­do-nos como com­preen­der o mais pro­fun­do sig­ni­fi­ca­do da vida. O Sutra Shalistamba (Sutra do Pé de Arroz) diz: “Ver a Gênese Condicionada é ver o Darma único. Ver o Darma único é ver o Buda”.

 

Discípulos do Buda, ouçam aten­ta­men­te, pois o que ouvi­ram são ensi­na­men­tos ver­da­dei­ros.

Não ouçam esses ensi­na­men­tos sem nada fazer com eles. 

Para se bene­fi­ciar dos ensi­na­men­tos do Tathagata, é neces­sá­rio que se per­mi­tam fluir com eles, como se esti­ves­sem flu­tuan­do em uma cor­ren­te ­d’água.

Se resis­ti­rem a eles, serão como quem nada con­tra a cor­ren­te e logo se cansa e se afoga.

Não ouçam esses ensi­na­men­tos sem nada fazer com eles.

Se ouvi­rem e não pra­ti­ca­rem, serão como quem dis­põe de um pode­ro­so remé­dio, mas, por­que não o toma, não se cura da sua doen­ça.

Se ouvi­rem e não pra­ti­ca­rem, serão como quem con­ta­bi­li­za a rique­za ­alheia, mas não tem nada que possa cha­mar de seu.

 

Sutra Avatamsaka (Sutra da Guirlanda de Flores)

 

 

 

Capítulo 7 do livro Budismo Significados Profundos, Venerável Mestre Hsing Yün,
Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011.