Utilize a fé para estudar o Darma
A fé cega é inútil. O Buda nunca pediu que acreditassem nele cegamente; sempre conclamou as pessoas a testar seus ensinamentos e comprová-los por si próprias. Na verdade, não há outra forma de estudar o Darma a não ser testando-o e voltando a testá-lo todos os dias. O processo de crescimento e aprendizado que se inicia quando entramos em contato com o Darma pela primeira vez só termina com a iluminação. E poderia ser diferente? Como alguém poderia esperar se iluminar sem se esforçar rumo a essa meta todos os dias, sem exceção?
Sendo assim, de que serve a fé? Já que é necessário testar o Darma, por que precisamos de fé para aprendê-lo? A resposta a essa pergunta está no que entendemos por “fé”. Em seu nível mais básico, a fé também poderia ser chamada de “confiança” ou “expectativa razoável”. Um estudante universitário de matemática precisa confiar no professor e ter uma expectativa razoável de que o curso que ele está fazendo o levará a compreender melhor a matéria. Do mesmo modo, um estudante do Darma precisa ter confiança no Buda e ter uma expectativa razoável de que seus ensinamentos o levarão à iluminação.
O Buda ensinou como nos tornamos sábios. A fé que se insinua e se move em nós quando ouvimos sua mensagem é um chamado da sabedoria mais elevada sobre a qual ele falava. Depois de conviver algum tempo com o Darma, passaremos naturalmente a confiar nele cada vez mais. Nossa fé crescerá, porque nossa experiência dos ensinamentos do Buda nos mostrou que eles são verdadeiros. A fé, assim como a sabedoria, cresce quando exposta ao Darma.
Fé, crença, confiança: sem elas, é impossível fazer qualquer coisa. A própria vida baseia-se na fé e na esperança. Sun Yat-sen (1866-1925), considerado o pai da China moderna, criou o slogan “Fé é força”. O Tratado sobre a Perfeição da Grande Sabedoria diz: “O Budadharma (budismo) é um vasto oceano; entramos nele pela fé e o atravessamos pela sabedoria”. Segundo o Sutra Avatamsaka (Sutra da Guirlanda de Flores): “A fé é a mãe de todas as virtudes. Ela nutre todas as boas raízes”.
A fé é como a raiz de uma planta. Nada cresce ou floresce se as raízes não forem fortes. Quando se perde a fé, vai-se também a esperança; a vida torna-se sombria. Quando a fé é adquirida, ganha-se a esperança, e a vida volta a ser maravilhosa. No estudo do Darma, é necessário alcançar o equilíbrio correto entre a necessidade de crer no Darma e a de testá-lo. Se nele acreditarmos com fé demasiada, talvez nunca venhamos a fazer as perguntas mais penetrantes, que levam aos níveis mais profundos de compreensão. Por outro lado, se gastarmos tempo excessivo questionando toda e qualquer palavra, estaremos nos privando da oportunidade de aprender o que quer que seja.
Há pessoas que contestam tudo o que ouvem e argumentam contra todo e qualquer aspecto do ensinamento do Buda. Essa atitude impossibilita o aprendizado, e não era a isso que o Buda se referia ao dizer que sua mensagem deve ser testada. Dizia, isso sim, que devemos primeiro aprender a mensagem e – depois aplicá-la em nossa vida. Aquele que aprende o Darma corretamente e o aplica corretamente em sua vida se convence de que ele é verdadeiro.
Utilize a dúvida para estudar o Darma
Vindo depois do que foi dito, essa sugestão pode parecer estranha. No entanto, já faz milênios que a dúvida constitui um importante método de estudo do Darma. O Darma é como um grande sino: mal se ouve quando tocado de leve; porém, quando tocado com força, repercute tanto que seu som alcança o mundo todo.
O Darma pode ser testado e comprovado. Enfocando todos os vagos –anseios de nossas dúvidas diretamente no Darma, teremos como resposta um sonoro “sim”. Há um ditado chan que se aplica aqui: “Pequenas dúvidas levam a pequenos despertares. Grandes dúvidas levama grandes despertares”. Sem perguntas, não obtemos respostas. Sem dúvidas, não temos pontos de acesso a novas informações. Quem tem certeza de tudo não aprende nada. Nunca tenha medo de fazer nenhuma pergunta, já que, definitivamente, o Darma pode responder a todas as questões.
No Budismo Chan, as dúvidas são utilizadas como técnica de meditação. Os mestres chan nos aconselham a sondar e explorar nossas sensações de dúvida. Por centenas de anos, eles têm dito que as áreas mais obscuras do nosso ser são fontes incríveis de energia que não aproveitamos.
Vastos estados de samádi (concentração) podem se descortinar se ultrapassarmos as palavras e mergulharmos fundo nas reservas primordiais de maravilhamento e dúvida que jazem no fundo do nosso ser. As perguntas, na meditação chan, são elaboradas para que nos aprofundemos nessas jazidas de prodígio e sabedoria. Os mestres chan nos aconselham a fazer amizade com as dúvidas. Sugerem também que nos perguntemos: “Como era meu rosto antes de eu nascer?”, “Quem está recitando o nome do Buda?”
Utilize a mente desperta para estudar o Darma
As pessoas vão à escola para adquirir conhecimento. Estudam o Darma para se iluminar. O processo de iluminação é uma combinação do [despertar] ‘gradual’ e do [despertar] ‘súbito’. Vagarosamente, lemos e estudamos os ensinamentos do Buda até que um dia, de repente, dizemos: “Ah! Entendi”. Então, damos o passo seguinte, recomeçando o mesmo processo: gradual acumulação de informações, seguida de súbita compreensão de como elas devem ser utilizadas.
Se entendermos esse processo, poderemos melhor apreciar os dois aspectos do caminho da iluminação. Um deles baseia-se em um lento processo de aprendizagem, ao passo que o outro é algo que se agita em nós, repentinamente, quando o que foi aprendido penetra as camadas mais profundas do nosso ser. Quando nos aplicamos aos estudos, é necessário atentar para ambos os aspectos.
Certa vez, um jovem estudante perguntou a um mestre chan por onde deveria começar a estudar o Darma. O mestre disse: “Você ouve os pássaros cantando nas árvores e os grilos cricrilando na grama? Pode ver a água fluindo no riacho e as flores despontando nos campos?” O jovem respondeu que sim. O mestre concluiu então: “É por aí que você deve começar a estudar o Darma”. Com essa resposta, o mestre mostrou ao estudante duas coisas importantes: que é preciso utilizar a mente desperta para começar seus estudos e que os estudos devem se fundamentar no mundo real que existe à nossa volta. Se ouvirmos o mundo de forma receptiva, a mente desperta ouvirá a voz do Buda no murmúrio de um regato, e os olhos verão o mundo do Darma em tudo o que contemplarem.
Todos devemos aprender a encontrar a mente desperta em nós. Depois de achá-la, é preciso aprender a confiar nela e utilizá-la para descobrir o caminho rumo ao Buda que já existe dentro de nós.
Outra história na crônica do Budismo Chan ilustra o mesmo ponto de outra forma.
Quando mestre Longtan Chongxin (datas ignoradas) ainda era noviço, foi estudar sob a tutela do mestre Tianhuang Daowu (748-807). Depois de vários anos, mestre Tianhuang Daowu ainda não lhe havia dado nenhuma lição, nem uma vez sequer, sobre o Darma. Sentindo-se desmotivado, Longtan Chongxin decidiu procurar outro lugar onde pudesse ter aulas de verdade. Ele foi ter com mestre Tianhuang Daowu e disse: “Vou embora para poder estudar o Darma”. O mestre respondeu: “Mas nós ensinamos o Darma aqui. Por que a necessidade de ir embora para estudar?” Longtan Chongxin replicou: “Passei muitos anos aqui e o senhor nunca me disse nada a respeito do Darma”. O mestre ponderou: “Quando você me traz o chá, eu o aceito. Quando você me traz alimentos, sempre os como. Quando você me reverencia, sempre agradeço e retribuo com a cabeça. Qual foi o dia em que não lhe transmiti o Darma?” Ao ouvir essas palavras, Longtan Chongxin teve um grande despertar e resolveu não abandonar seu mestre.
A sabedoria do Buda encontra-se dentro de nós. Cada um deve encontrá-la por si próprio. Professores e livros auxiliam no aprendizado, mas nada, nem ninguém, pode fazer com que a mente amadureça por nós. Ninguém jamais conseguirá nos mostrar nosso verdadeiro ser. É tarefa nossa descobrir quem realmente somos.
Utilize a não mente para estudar o Darma
A não mente não calcula, não compara, não trama. A não mente é pura. É segura. Não foi manchada pelas complexidades do egocentrismo. Já vi chegarem ao monastério pessoas com intensa atividade mental, querendo iluminar-se o quanto antes. Em geral, devotam-se aos estudos por um ou dois anos e... desistem. Isso acontece porque já chegam com a mente cheia de coisas e, assim, não conseguem atingir o âmago da mensagem do Buda.
A intensidade da mente constrói uma muralha de ideias preconcebidas entre a pessoa e o Darma. Esse tipo de atitude impossibilita o aprendizado de novos conteúdos, quaisquer que sejam eles. Nossa verdadeira mente é receptiva ao que acontece à nossa volta e consegue ouvir sua própria inspiração, assim como a de outras pessoas. A verdadeira mente é uma não mente sem individualidade.
Um aluno perguntou ao mestre de meditação: “Mestre, o senhor geralmente medita durante longos períodos de tempo. O senhor entra em meditação através da mente ou da não mente?” O mestre respondeu: “Não entro em meditação através da mente, tampouco da não mente. Entro em um estado que está além das distinções relativas”.
Em última instância, as verdades contidas no Darma estão além das dualidades e oposições. Transcendem os opostos: bem e mal, alegria e tristeza, calor e frio, certo e errado. A não mente pode ser vista como um estado mental capaz de levar a mente para além de todas as dualidades. É como um antídoto que cura a mente da tendência de aferrar-se a preconceitos limitantes. É quase impossível sorver o rico néctar dos ensinamentos do Buda se os abordarmos sempre de forma analítica ou buscando compará-los a alguma coisa. Primeiro, é necessário estar receptivo: isso é a não mente. Então, será possível absorver o Darma e torná-lo parte de nós mesmos, descobrindo que ele sempre esteve em nós.
Um discípulo do mestre chan Guishan Lingyou (771-853) perguntou-lhe: “Qual é o caminho?” O mestre respondeu: “A não mente é o caminho”. O discípulo disse: “Então, estou perdido!” Ao que o mestre replicou: “Então, encontre alguém que não esteja perdido”. O discípulo questionou: “Mas quem é que não está perdido?” O mestre disse: “Não existe ninguém além de você. Encontre a si mesmo!”
Do fundo do coração, espero que todos os aprendizes do Darma adotem essa atitude em seus estudos. Com receptividade ao mundo à nossa volta e sensibilidade para as conclusões da nossa introspecção, os grandes ensinamentos do Buda nos levarão infalivelmente à libertação final.
A meta da não mente é ver o mundo como ele realmente é, e não como pensamos que é. Alcançando esse objetivo, será possível ver o Buda em tudo e, nele, o seu verdadeiro ser. Reconheceremos todo o universo em uma única flor e a eternidade em um sorriso passageiro.